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Barulho ou Tradição? Pernambuco debate o futuro dos fogos de artifício ruidosos

 

Por Ricardo Gouveia – Blog do Ricardo Gouveia

Em Pernambuco, a queima de fogos de artifício com estampido — marca registrada de celebrações como o Réveillon e o São João — está no centro de um debate que envolve cultura, saúde pública, bem-estar animal e o direito ao silêncio. A tradição, antes tida como intocável, passou a ser confrontada por legislações que colocam em primeiro plano os impactos negativos causados pelos ruídos excessivos.

Diferentemente da vaquejada, que foi reconhecida como manifestação cultural legítima pelo Supremo Tribunal Federal (STF), os fogos de artifício ruidosos não receberam a mesma tolerância por parte da Corte. No julgamento do Recurso Extraordinário 1210727/SP, o STF decidiu que é constitucional uma lei municipal que proíbe o uso de fogos que produzam estampidos, abrindo precedente para regulamentações similares em todo o país.

Com base nessa decisão e na prerrogativa constitucional de proteção ao meio ambiente — competência que Estados e municípios compartilham — Pernambuco sancionou a Lei nº 17.195/2021. O texto proíbe a utilização de artefatos pirotécnicos das classes C e D, considerados de alto impacto sonoro, em eventos ao ar livre, sejam públicos ou privados. Qualquer foguetório com mais de 0,25 gramas de pólvora está sujeito à proibição.

Promotorias de Justiça em diferentes cidades pernambucanas têm recomendado aos prefeitos que realizem campanhas de conscientização para assegurar o cumprimento da lei. No entanto, surge um impasse: como uma lei estadual pode impor obrigações financeiras aos municípios sem ferir a Constituição Federal, que proíbe esse tipo de interferência? Para alguns gestores, essa é uma conta que deveria ser assumida pelo próprio Estado.

Mais do que uma questão legal, os dados apresentados pelo Ministério da Saúde ajudam a dimensionar os riscos da prática. Em anos recentes, mais de 7 mil pessoas se feriram ao manusear fogos de artifício. As estatísticas são alarmantes: 70% dos casos envolvem queimaduras, 20% incluem lacerações e cortes graves, e os outros 10% resultaram em amputações, danos à audição e até perda total da visão.

Não se trata apenas de números. Há também o sofrimento silencioso — ou melhor, barulhento — de quem vive à margem da euforia coletiva. Crianças com transtorno do espectro autista, idosos, enfermos e animais domésticos são diretamente impactados pelo estrondo dos fogos, muitas vezes desencadeando crises de ansiedade, dores e até convulsões.

É evidente que os fogos de artifício fazem parte da memória afetiva de muitos pernambucanos. Estão entre as imagens mais vívidas das festas juninas, dos natais em família e das viradas de ano carregadas de esperança. Contudo, preservar tradições não pode significar ignorar os danos que elas podem causar.

Cabe às administrações municipais o desafio de equilibrar essa equação: valorizar o patrimônio cultural, mas com responsabilidade social. Uma alternativa viável — e que já tem ganhado força em outras partes do Brasil e do mundo — é o incentivo aos chamados fogos silenciosos, que mantêm o espetáculo visual sem comprometer a saúde alheia.

O debate não deve ser visto como uma tentativa de suprimir a cultura popular, mas como uma oportunidade de reinventá-la com empatia e bom senso. Em tempos de tanto barulho, ouvir as vozes dos mais vulneráveis pode ser o gesto mais civilizado — e necessário — que uma sociedade pode oferecer.

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Sobre Ricardo Gouveia

Ricardo Gouveia é jornalista sob o DRT nº 5662/PE, com pós-graduação em Comunicação,escritor, pastor evangélico com formação em teologia, psicologia pastoral, capelania e missiologia, além de ser bacharel em Biomedicina e Enfermagem.

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